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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

UM NASCIMENTO


O NASCIMENTO DO HERÓI NO BAILIQUE



OTTO RANK, em seu livro “O mito do nascimento do herói”, afirma que somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, ao deixar a condição de criatura aquática, vivendo do fluido amniótico, para assumir, daí por diante, a condição de mamífero que respira o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisava erguer-se sobre os próprios pés. Eu, Lívia, fui agraciada em assistir o nascimento de um herói amazônico:
A lua banhava toda a floresta e as águas que a envolviam com uma luminosidade magnífica. Eu a contemplava e descansava sobre o trapiche, quando chegou o pedido de ajuda a uma mulher que após três horas de viagem pelas águas estava no Posto de Saúde em trabalho de parto. Neste dia, ao levantar, aquela mulher sentiu a bolsa romper e imediatamente exteriorizar a mão da criança em sua vida. Depois de muitas tentativas sem êxito, a família achou por bem levá-la ao único serviço de saúde. Abruptamente eu saí de um estado idílico e me confrontei com a realidade do exercício da profissão de parteira nestas localidades desprovidas de todos os recursos. O que fazer? O que vai suceder? E mais tantas perguntas vieram a minha cabeça, pois estávamos distantes a mais de seis horas de barco de um centro obstétrico.







Procurei desprover-me de toda a minha formação obstétrica e adentrar noutro universo de conhecimento que pertence às parteiras. Busquei Deus através dos espíritos das águas, do vento e da espessa floresta, assim como as minhas santas preferidas que invoco desde a infância.
A mulher estava completamente estafada; suas contrações eram curtas e fracas. Por mais de três horas, todas as mulheres que vieram ajudar, envolveram a parturiente com um manto de compaixão, e todas nós sentíamos como que participando de uma mesma vida, em pleno estado de implicação. O ritual da manobra na tentativa de conduzir a criança para a posição correta de nascer foi fluido e simples. Com apenas dois toques suaves, contínuos e simultâneos na vagina e na barriga, a criança se postou perfeitamente.




O segundo desafio era fortalecer o seu tônus uterino a fim de atingir a dilatação completa. Buscamos todos os meios, ampliando o raio de ação pela vizinhança que ofereceu chá de ervas par estimular o trabalho do útero. Quando nos certificamos de que o período expulsivo estava próximo, ajudadas pelos companheiros do Corpo de Bombeiros, amarramos cordas acima da mesa de exame, para possibilitar a ela permanecer na posição de cócoras durante os precários puxos. Ao primeiro despontar da cabecinha, fomos invadidos por uma alegria transbordante. Todos nós estávamos parindo. Penso que vivemos a experiência de nos sentimos vivas em profunda comunhão.
Envolvidas pelas águas, pelas terras, o céu e a floresta, a mulher da Amazônia sabe que tem que se tornar senhora de seu próprio parto. E a parteira que a assiste estimula a sua confiança inata na capacidade de parir. Este corpo que soube gerar vida saberá dar à luz esta mesma vida. A parteira convoca a mulher a se responsabilizar pelo seu parto. A partir daí elas estabelecem uma relação de profunda confiança; uma confia e se entrega à capacidade da outra; uma relação autêntica, sujeito com sujeito. A parteira não se limita ao que encontra na realidade objetiva, ela vai ao encontro da subjetividade da mulher e da singularidade daquele parto. Ela vê além das aparências o sofrimento e ajuda a fazer com que ele dê lugar à esperança da chegada da criança; ela sabe ouvir compassivamente; ela é capaz de curar a sensação de isolamento e solidão, fazendo a mulher se sentir aceita e acolhida na comunidade humana. (LIVRO: PARINDO UM MUNDO NOVO. 2002/págs.84, 85, 86).


 

Localizado a 185 km, distante da Capital MACAPÁ-AMAPÁ, o arquipélago é composto por 8 (oito) ilhas com 52 comunidades e aproximadamente 12 mil habitantes.
- O desejo no partejar não escolhe lugar nem hora, porém a vida é feita nas instâncias do mundo, seja na floresta, na cidade de pedra, nos rios, em uma delegacia, em um carro, em uma canoa, no ônibus, na praça, em uma ambulância, no chão, na cama, no taxi; enfim o nascimento é algo que precisamos dizer que é impreciso dizer o momento do nascer. As luas da vida, o percurso, o tempo diz que; temos uma data, uma hora, um lugar, então podemos dizer que somos seres humanos abençoados pela natureza do nascer. (NONNATO RIBEIRO. 20 de Fevereiro de 2013/00h22min).



ARQUIVO: POSTAGEM/PROFESSOR-PESQUISADOR: NONNATO RIBEIRO
LIVRO: PARINDO UM MUNDO NOVO.
FOTOS: NONNATO RIBEIRO

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