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quinta-feira, 13 de março de 2014

A ARTE DO PARTEJAR DA ÉPOCA



               O PARTO QUE NÃO PERTENCE À MULHER


                      
                    Em qual parto a mãe mantém contato com o próprio corpo?


No dia da criança, estive em SP para um evento organizado pelo Instituto Alana sobre Criança e Consumo, onde não só pude aprender muito, como também tive o privilégio de conhecer várias mães blogueiras. Entre elas estavam Kalu e Renata, que são algumas das vozes por trás do incrível Mamíferas. Como o excelente nome do blogue já indica, elas são árduas defensoras do parto natural, da amamentação prolongada, da maternidade por apego, e de tudo que, num mundo utilitarista e apressado como o nosso, é visto como radical.

  
Pois é, vivemos num país em que dizer que o parto natural é melhor para a mãe e o bebê é visto como radical. Em que o senso comum insiste que o único do parto possível é a cesárea. Isso, além de absurdo, vai contra o que recomenda a Organização Mundial de Saúde, que só considera cesárea aceitável em 15% dos casos, e não em 85%, como ocorre no Brasil.

Em agosto eu, que optei por não ser mãe, virei titia pela primeira vez. Meu irmão e minha cunhada insistiram que queriam um parto natural, humanizado. Foi dificílimo não pelo parto em si (feito na água), mas pelo desafio em encontrar um médico que tivesse essa mentalidade. Eles passaram por oito médicos e tiveram de peitar o plano de saúde, que não queria pagar o parto natural. Um desses médicos disse a minha cunhada: "Você só precisa se preocupar com o enxoval; o resto, deixa comigo". Tem jeito maior de excluir uma mulher do seu próprio corpo?

 É disso que Nanda, que atualmente vive em Maceió e tem seu próprio blogue, mas é parte atuante do Mamíferas, fala neste guest post, que publico com grande orgulho. Discutir gravidez e parto e tantas outras coisas mamíferas são definitivamente assuntos feministas, que só não têm mais espaço por aqui porque me falta a experiência. Mas, pessoalmente, apoio todas as causas dessas mães tão "radicais". Aprenda com o post da Nanda (eu aprendi muitão).
Embora não haja consenso na comunidade científica, há fortes evidências de que as sociedades primitivas eram matriarcais. Isso me parece bem óbvio, afinal, as mulheres sempre foram as geradoras de nova vida, e não pareceria tão óbvio o papel dos homens neandertais nessa reprodução vital. A mentalidade matriarcal sobreviveu muito bem enquanto a raça humana permaneceu nômade, mas foi só ancorar-se em um lugar para que tudo mudasse.

 
O surgimento da propriedade privada foi uma dessas mudanças, que veio lado a lado com o patriarcado. Isso transferiu o papel da mulher de líder a uma simples perpetuadora dos genes masculinos, para que a propriedade adquirida com tanto esforço não se perdesse nas gerações futuras.


Mas veio uma era, e foi-se uma era, e o homem ainda não controlava a vagina. Ele poderia tomar a mulher para si, enxertá-la de sementes, mas quem gerava e pária continuava sendo a mulher. E o parto continuou cercado da aura feminina: as parteiras eram sempre mulheres (e esse comportamento repete-se nas sociedades tribais não inseridas na cultura majoritária), e homens eram proibidos no momento do parto até muito recentemente.


Até que veio a rainha Vitória da Inglaterra. Provavelmente não a primeira mulher, mas o primeiro registro de um parto em posição de litotomia -- deitada, com as pernas abertas para o médico e o rei serem testemunhas daquilo que os homens por muito tempo foram proibidos de presenciar. Não é preciso ser médico ou blogueira de maternidade para entender que dar à luz deitada dói muito mais, basta um conhecimento prévio sobre como a gravidade funciona. Não à toa, a rainha Vitória também nobilizou o parto com anestesia.

Antes da anestesia, já existia a cesárea. Abrir uma mulher ao meio quando na verdade ela já estava aberta, só que em outro lugar, era visto como medida de última instância só praticado em parturiente já mortas, ou prestes a morrer já que a cesárea as mataria de qualquer forma. Existe uma história sobre o nascimento de Júlio César ter sido pela via bárbara cirúrgica, e presume-se ser daí a origem do termo cesariana, mas o termo caedare cortar parece ser uma justificativa mais plausível.

Junta-se seis a meia dúzia: a medicalização do parto e os avanços da ciência, e tem-se uma sociedade cesarista. O homem finalmente conquistara aquele quinhão reservado à fêmea e agora podia ele mesmo tomar conta do serviço. Bastava, para isso, que a mulher se deitasse, se anestesiasse, e se deixasse cortar.
 
Existe uma falsa ilusão de que a cesariana é uma libertação da mulher das obrigatórias dores do parto. Dor essa, reza a lenda, que Deus presenteou Eva após o Pecado Original: "Multiplicarei as dores de tua gravidez, será na dor que vais parir os teus filhos", disse o bom velhinho. Que o parto é a dor mais excruciante que uma mulher jamais sentirá na vida, é consenso universal. Os filmes mostram, as novelas mostram, sua avó falou e você leu a respeito. Não parecem haver dúvidas de que parir é ajoelhar no milho, e a cesariana são joelheiras.


Isso se reflete na escolha de grande parte das mulheres pela via cirúrgica, já no início de sua primeira gravidez. Como poderia uma mulher que nunca sentiu sequer as dores do trabalho de parto saber que não aguentaria as dores do próprio? Senso comum. Louvemos a cesárea, e não só aqui no Brasil, mas como um fenômeno mundial que cresce a olhos vistos e torna-se um problema de saúde pública.

Mas vamos elucidar um pouco essa cirurgia tão banalizada. Wikipédia diz: “São sucessivamente abertos o tecido subcutâneo e a aponeurose dos músculos reto abdominais, separados os músculos na linha média e abertos os peritônio parietal, o peritônio visceral e a parede uterina.

O próximo tempo é a extração do feto, seguida da retirada da placenta e revisão da cavidade uterina. São então suturados os planos anteriormente incitados.” Contando: seis camadas. E esqueceram de mencionar o tecido cutâneo, a própria pele. Ainda soa agradável, se levarmos em consideração que a mulher estará anestesiada do pescoço para baixo.

Tendo em mente que a cesárea é uma cirurgia de grande porte, percebemos que ela não é a solução para a tão temida dor, mas sim um adiamento da mesma. Gostaria muito de ser apresentada a uma mulher que conseguiu passar pelo pós-operatório de uma cesariana sem doses cavalares de analgésico: eu apertaria sua mão com uma chave-inglesa para verificar o funcionamento de seu sistema nervoso.


Eu não sou contra a cesárea, não sou mesmo. Acho um procedimento médico muito importante quando necessário. E ele dificilmente é necessário. Mas ele agrada o sistema ao serializar os nascimentos, agrada aos homens, que participam mais do que a mulher em uma cesárea, e agrada a algumas mulheres, que podem procriar sem sentir dor.

E é esse último ponto que incomoda mais: a cesárea como uma opção de via de nascimento, e não como um procedimento médico de emergência. Estamos em um blogue feminista, e se eu estou escrevendo aqui, é porque obviamente defendo o direito da mulher ao próprio corpo. Defendo isso com unhas e dentes, tanto que defendo o aborto.


Enxergo como uma questão bem simples: se não quer parir, aborte. E quando eu falo parir, veja bem, eu estou falando do parto normal, vaginal, natural, o nome que você quiser dar (apesar de serem todos diferentes entre si). Quem pare é a mulher, e quem faz a cirurgia, ou a cesariana, é o médico. Parir, como uma questão linguística e sociocultural, é retomar algo que nos foi roubado pelo homem, ao avançarmos tanto em conquista pela emancipação.

Voltando à questão, existem vários motivos pelos quais uma mulher engravida: acidente, desejo e futilidade sendo um resumo básico da questão. Se foi por acidente, apesar de ser proibido por lei e um enorme tabu, o aborto ainda é uma opção arriscada, por não ser legalizada mas repetida à exaustão. Não abortou? Então deal with it: tem um bebê crescendo dentro de você e agora é ele quem escolhe a hora em que vai sair.

Se você optou por compartilhar seu corpo com o de outro ser e vejam bem: eu só começo a falar sobre o direito desse outro ser a partir do momento em que ele passou a ser uma escolha da mulher que o carrega você não tem o direito de escolher a hora em que ele vai nascer. Existe uma série de fatores biológicos que determinam isso, que convergem para o trabalho de parto e o parto em si.

Considero uma cesariana eletiva mais criminosa do que um aborto até porque nem vejo o aborto como crime. E a cesariana eletiva me intriga de sobremaneira: se você não arrancou esse feto quando ele ainda não estava pronto, por que é que o arrancaria antes do tempo anyway, só porque ele teoricamente já estaria apto a sobreviver?

Além de uma série de outras maneiras de aliviar as dores do parto, existe a anestesia, que evoluiu bastante desde o clorofórmio da Rainha Vitória. Claro que a anestesia traz consigo alguns percalços como a obrigatória posição de litotomia e consequente episiotomia (corte no períneo), mas dói menos. Se é a busca pelo direito de não sentir dor, a solução é a anestesia, não a cesariana.
 
E podemos entrar no mérito das histórias escabrosas que foram ouvidas da vizinha da tia-avó, sobre os absurdos oriundos de um parto normal malconduzido e/ou na saúde pública. Mas podemos também lembrar que a cesariana seriada é um fenômeno novo na medicina, e não parecem existir muitas pessoas dispostas a estudar os efeitos dela na população (talvez porque quem estude essas coisas sejam médicos, e a maioria dos médicos se beneficia da cultura cesarista).


Se lutamos por direitos da mulher, lutamos também pelo direito de parir. De parir, como um ato de protagonismo da mulher, de recuperação de seu matriarcado e de sua vagina. E essa é uma luta feminista também.

                                                               Quinta-feira, 27 de outubro de 2011





ARQUIVO/POSTAGEM: PROFESSOR/PESQUISADOR: NONNATO RIBEIRO
Material/Postagem: www (REDE MUNDIAL)

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